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  • Foto do escritorDr. André Couto e Gama

5. Preconceito, Justiça e o Código de Ética Médica:o hard case das Testemunhas de Jeová [Texto 1]

Em se tratando de ética profissional, é comum que os profissionais da saúde sejam submetidos ao caso hipotético de atendimento às testemunhas de Jeová, sendo um rico exemplo para abordar as muitas técnicas associadas ao (método) problem based learning (PBL). Isso porque, tratando-se de um paciente com pontuais peculiaridades, tem-se demonstrado como a tomada de decisão médica é um desafio, que pode, a cada gesto, repercutir na vida profissional do médico e dos demais agentes de saúde, repercussão que será negativa em casos de descuido, por exemplo. O estudo deste hard case também auxilia na tomada de decisão para a solução de outras recusas terapêuticas, comum em tratamentos de doenças psiquiátricas, epidemiológicas, e assim por diante.

Uma testemunha de Jeová tem a sua fé baseada na Bíblia (Antigo e Novo testamentos) e, em consequência da específica interpretação dada ao texto sagrado, haveria evidente ordem de abstenção de consumir, do outro, seu sangue (cf. Gênesis 9:4; Levítico 17:10; entre outras passagens). A consequência religiosa para a medicina moderna é diretamente ligada à hemoterapia (transfusão sanguínea alógena), que recebe fortes censuras do ponto de vista desse específico grupo religioso. O caso, mais do que um desafio hipotético de tomada de decisão ética, é cabalmente possível de se concretizar na vida profissional de um médico e de toda equipe de saúde, sobretudo quando se verifica que esse grupo afirma ser composto por mais de oito milhões e meio de pessoas no mundo, sendo quase um milhão só no Brasil[1].

Assim, indaga-se como tratar um paciente cujo quadro clínico é indicativo de transfusão de sangue, mas que, por motivos religiosos, opõe-se ao procedimento. Recorde-se de que a indicação terapêutica transfusional está ligada à falência temporária ou permanente da produção de sangue pelo paciente e às perdas agudas de sangue, capazes de causar danos ou morte iminente (cf. Parecer CFM no 12/14).

De início, o Código de Ética Médica já irá atrair, para que o caso se desenvolva regularmente, o princípio de justiça, que veda preconceito de qualquer natureza (cf. Capítulo I, inciso I do CEM). Ou seja, negar serviço médico pelo fato de o paciente não se enquadrar em um dado “modelo” pré-concebido é um ato contrário à ética profissional. E o fato de que o médico, muito provavelmente, será mais demandado, inclusive em termos de mais tempo gasto com esse paciente, está plenamente de acordo com a política de solução com base na necessidade[2], sendo certo que o CEM lhe confere proteção quanto ao ideal dispêndio de tempo, adequado à exigência de cada tratamento (inciso VIII do Cap. II).

O CFM vem se manifestando formalmente sobre o assunto há décadas, como demonstram a já revogada Res. no 1.021/1980, a Res. no 1.995/12, o Parecer CFM no 12/14 e a polêmica Res. no 2.232/19, a qual ainda apresenta alguns de seus artigos com vigência suspensa por ordem judicial (Ação Civil Pública no. 5021263-50.2019.4.03.6100).

A Res. CFM no 2.232/19 contém preceito sobre a autonomia do médico em seu art. 7º, criando uma estranha casuística: ao médico é dada a objeção de consciência (inclusive para encerrar a relação profissional) quando o paciente recusa a terapêutica indicada. A complementação do art. 8º dessa Resolução reflete até mesmo nos casos em que haja reconhecidamente atos médicos alternativos para o tratamento.

É evidente que a referida Resolução, no caso de colisão entre ideais religiosos e indicações terapêuticas, é incompatível com o princípio de justiça do CEM (que afasta discriminação de qualquer natureza no inciso I do Cap. I) e da Lei no 12.842/13 (que em seu art. 2º reafirma a máxima de não discriminar). Vale frisar que a conduta pode ser compreendida, sob certa perspectiva, como discriminatória de credo, pois legitimaria a negativa de serviços ao fundamento exclusivo da restrição religiosa do paciente. Veja-se que há sim diversos fundamentos éticos para a recusa, e que não configuram discriminação, como é o caso de negativa quando não há urgência ou emergência (ou, em havendo, quando há outros médicos dispostos ao atendimento), conforme inciso VII do CEM. Além disso, é razoável a negativa quando ausentes os meios alternativos para o atendimento (inciso XXVI do Cap. I), ou mesmo quando o quadro clínico não é sugestivo desses procedimentos alternativos à transfusão. Contudo, a Res. CFM no 2.232/19 não optou por seguir por nenhuma delas.

A questão é tão séria (de colisão entre a referida Resolução e o disposto no CEM) que se volta contra outro preceito ético: o de que as escolhas do paciente relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos deverão ser aceitas quando adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas (inciso XXI do Cap. I). Aqui, fala-se sobre os meios reconhecidos pela Medicina como alternativos à transfusão, sendo eles as autotransfusões[3] e as técnicas clínicas e cirúrgicas para minimizar perda sanguínea[4], apenas para citar dois grandes grupos. Ou seja, a objeção de consciência como tratada pela Res. CFM no 2.232/19 faz crer que o médico não precisa usar, quando adequados ao quadro clínico, meios alternativos à transfusão sanguínea, o que não procede segundo o CEM. Ao contrário, a saúde do paciente é merecedora do máximo zelo por parte do médico (inciso II do Cap. I), além de ser vedado ao médico deixar de usar todos os meios disponíveis de promoção da saúde do paciente (art. 32 do Cap. V)[5]. Justamente aqui se encontra o dever de atualização do médico acerca das novas tecnologias e alternativas terapêuticas (viabilizando, sempre que possível, opções de tratamento na eventual recusa de um específico procedimento). Recorde-se, ainda, abundante literatura médica indicativa de que um planejamento da equipe multidisciplinar para intervenção cirúrgica notadamente vinculada a importantes perdas sanguíneas pode resultar em desnecessidade de transfusão sanguínea[6]. Assim, além da violação ao princípio da justiça, pode-se infringir também a beneficência, conforme já tivemos a oportunidade de tratar[7]. Fica evidente que a boa prática médica não pode se arrimar em “desistência” do devido cuidado simplesmente a partir da negativa de um tratamento por motivos religiosos.


 

  1. in jw.org/pt, consultado aos 15 de março de 2021.

  2. BEAUCHAMP, Tom L; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics: Eighth Editon. New York: Oxford University Press, 2019, p. 269.

  3. BOGOSSIAN, Levão; BOGOSSIAN, Aníbal da Torre. Blood Auto-Transfusion of Previous Pre-Collection of Blood. v. 35, 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-69912008000400009, acessado aos 02/06/2021.

  4. SANTOS, Antônio Alceu dos [et al]. Therapeutic Options to Minimize Allogeneic Blood Transfusions and Their Adverse Effects in Cardiac Surgery: A Systematic Review. Revista Brasileira de Cirurgia Cardiovascular, p. 606–621, 2014.

  5. FRANÇA, Genival Veloso de. Comentários ao Código de Ética Médica: 7ª ed. Rio de Janeiro: Koogan, 2019, P. 138.

  6. Revista Brasileira de Anestesiologia, Vol. 55, nº 5, setembro - outubro, 2005, p. 538-45. In https://www.scielo.br/pdf/rba/v55n5/en_v55n5a09.pdf, acessado aos 17/05/2021.

  7. https://www.bgdadvogados.com.br/post/precisamos-falar-sobre-benefic%C3%AAncia-o-c%C3%B3digo-de-%C3%A9tica-m%C3%A9dica-e-o-melhor-benef%C3%ADcio-do-paciente

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