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  • Foto do escritorDr. André Couto e Gama

6. Autonomia e o Código de Ética Médica: o hard case das Testemunhas de Jeová [Texto 2]

A negativa do paciente de se submeter a uma terapia indicada para seu quadro clínico sempre irá se desdobrar em uma questão de ordem ética posta para o profissional de saúde. As testemunhas de Jeová possuem séria restrição, advinda de suas crenças, em relação à transfusão sanguínea (Parecer CFM n° 12/14). A análise passa, normalmente, para os aspectos da Autonomia aplicada ao caso, recordando-se que esse princípio já foi abordado, com exclusividade, em outro texto [1]. Ao médico cabe informar ao paciente a respeito do seu quadro clínico, o que faz no exercício dos seus direitos profissionais de estabelecer diagnóstico e tratamento (Inciso XVI do Cap. I). Essa orientação direcionada à pessoa do paciente [2] não é unilateral, mas sim dinâmica e gerada pelo processo de diálogo (honesto e verdadeiro), cujo objetivo é gerar reflexão para que o paciente também exerça seu direito à escolha dos procedimentos diagnósticos e terapêuticos (Inciso XXI do Cap. I). O protocolo seria apontar benefícios e possíveis malefícios da transfusão sanguínea e buscar fazer com que o paciente, de fato, entenda as razões da indicação do tratamento [3]. É absolutamente importante recordar que o ato transfusional comporta em si a possibilidade de reação adversa (vide Res. RDC n° 34/14, da ANVISA), de modo que a recusa, para além das razões religiosas, pode se dar também pela não aceitação do risco imediato ou tardio decorrente da intervenção. Ainda assim, um paciente pode requerer um procedimento por ele considerado mais invasivo quando sua vida está em perigo (ou quando irá proporcionar melhor qualidade de vida, de modo sensível), mesmo contra convicções prévias que trazia sobre o que seria melhor para ele próprio. Vale dizer, pode chegar a uma conclusão que até então desconhecia: que se preocupa mais em prolongar sua vida do que antes imaginava [4]. Em termos argumentativos, o nível de aceitação do procedimento pode se dar também quando a transfusão não é da “totalidade” do sangue, mas de apenas um ou alguns dos seus componentes primários, procedimento já comum nos quadros de sangramento (com infusão apenas de plaquetas) ou de anemia (restrita a glóbulos vermelhos). Mas é bom ficar claro que tanto sangue quanto seus derivados são igualmente proibidos por este específico movimento cristão [5]. É importante destacar que o médico não deve exercer sua autoridade para limitar o exercício da autonomia do paciente (art. 24, Cap. IV, do CEM). Ou seja, não pode falsear as informações prestadas para obter uma aquiescência notadamente viciada (omitindo, por conveniência, informações as quais, caso conhecidas pelo paciente, gerariam decisão diversa). Ao contrário, deve esclarecer a situação ao paciente de forma simples e honesta [6], de modo a investigar com respeito o grau de compromisso do religioso com sua saúde, evitando exercer qualquer forma de paternalismo médico [7]. Se o paciente aquiescer, deve o médico registrar o consentimento livre e esclarecido. Essa é, inclusive, a recomendação que figura do Código de Ética de uma das maiores autoridades institucionais sobre o tema no mundo [8].

Se ainda assim o paciente, capaz e lúcido, não aceitar a prática terapêutica de transfusão sanguínea, ao médico cabe respeitar essa decisão [9] (art. 1º da Res. 2.232/19), registrando a negativa no prontuário do paciente, e verificar novas formas terapêuticas possíveis de se aplicar ao caso, em proveito do paciente. Vale dizer que a literatura médica registra, já há muito, que um planejamento da equipe multidisciplinar pode, nos casos de intervenção cirúrgica vinculada a importantes perdas sanguíneas, resultar em desnecessidade de transfusão sanguínea [10].

Em havendo métodos para substituir a transfusão, e que sejam aceitos pelo paciente, o médico deverá assim agir, com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional (inc. II do Cap. I, do CEM), usando de todos os meios disponíveis para a promoção da saúde do paciente (art. 32 do Cap. V), devendo ser essa a interpretação dada ao parágrafo único do art. 2º da Res. 2.232/19 (que, de forma incompatível com o CEM, claramente indica haver faculdade, onde há, na verdade, dever).

Os métodos alternativos serão possíveis quando verificada a disponibilidade dos recursos (justiça) e o ganho do paciente (beneficência). As alternativas à transfusão sanguínea alógena (material proveniente de outra pessoa) devem ser conhecidas pelo médico e, em sendo possível, devidamente executadas.

Mas, quando o diálogo é inviável, como nos casos de ausência de consciência do paciente, o desafio do caminho pela boa prática médica é evidentemente ainda maior. Nesses casos de pacientes que já não são mais responsivos, sua “vontade presumível” é certamente imprecisa [11]. Assim, importante diligência médica corresponde à verificação acerca de haver alguma diretiva antecipada de vontade do paciente, no sentido de registrar a autodeterminação do paciente, de não receber transfusão sanguínea. Comum encontrar essa diretiva junto à documentação do paciente, ou mesmo em recurso aos familiares e amigos. Esse meio informativo é tratado pela Resolução CFM no 1.995/12 como sendo manifestação de vontade que o médico levará em consideração (art. 2º, caput), prevalecendo sobre qualquer outro entendimento médico (art. 2º, § 3º), e desde que não esteja em desacordo com os preceitos do CEM (art. 2º, § 2º). Assim, evidenciam-se as questões éticas que o tema encerra, exigindo do profissional a adoção de medidas que vão muito além de meras suposições.


 

  1. https://www.bgdadvogados.com.br/post/autonomia-o-que-o-c%C3%B3digo-de-%C3%A9tica-m%C3%A9dica-pensa-da-rela%C3%A7%C3%A3o-m%C3%A9dico-paciente

  2. KRESS, Hartmunt. Ética médica. Trad. Hedda Malina. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p. 38.

  3. MILLIGAN, Lisa J; BELLAMY, Mark C. Anaesthesia and critical care of Jehovah’s Witnesses. Continuing Education in Anaesthesia, Critical Care & Pain | Volume 4 Number 2 2004, in https://academic.oup.com/bjaed/article/4/2/35/271642?login=true, acessado em 26/03/2021.

  4. BEAUCHAMP, Tom L; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics: Eighth Editon. New York: Oxford University Press, 2019, p. 101.

  5. MILLIGAN, Lisa J; BELLAMY, Mark C. Anaesthesia and critical care of Jehovah’s Witnesses. Continuing Education in Anaesthesia, Critical Care & Pain | Volume 4 Number 2 2004, in https://academic.oup.com/bjaed/article/4/2/35/271642?login=true, acessado em 26/03/2021.

  6. FRANÇA, Genival Veloso de. Comentários ao Código de Ética Médica: 7ª ed. Rio de Janeiro: Koogan, 2019, p. 133.

  7. BEAUCHAMP, Tom L; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics: Eighth Editon. New York: Oxford University Press, 2019, p. 104.

  8. Cf. Item 2.1.1 do Code of Ethics Relating to Transfusion Medicine da Sociedade Internacional de Transfusão de Sangue, in https://www.isbtweb.org/fileadmin/user_upload/ISBT_Code_Of_ Ethics_English.pdf, acessado aos 12/05/2021.

  9. FRANÇA, Genival Veloso de. Comentários ao Código de Ética Médica: 7ª ed. Rio de Janeiro: Koogan, 2019, P. 133; e KRESS, Hartmunt. Ética médica. Trad. Hedda Malina. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p. 306.

  10. Revista Brasileira de Anestesiologia, Vol. 55, nº 5, setembro - outubro, 2005, p. 538-45. In https://www.scielo.br/pdf/rba/v55n5/en_v55n5a09.pdf, acessado aos 17/05/2021.

  11. KRESS, Hartmunt. Ética médica. Trad. Hedda Malina. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p. 307.

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