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  • Foto do escritorDr. André Couto e Gama

1. Autonomia (O que o Código de Ética Médica pensa da relação Médico-Paciente)

Atualizado: 22 de jun. de 2021

O Código de Ética Médica (CEM) ostenta quatro grandes princípios [1] que servem de direcionamento para a tomada de decisões adequadas, tanto daqueles que estudam, como daqueles que se ocupam da prática da medicina. A inobservância desse guia pode acarretar sérias consequências para a saúde da própria condição profissional (podendo ameaçar o emprego, a licença para praticar a medicina e, mesmo, constituir-se em crime). Esses princípios são implícitos em quase todas as disposições do Código, e auxiliam na compreensão do que se deve fazer e daquilo que não se deve fazer.


O primeiro dos quatro princípios é o da Autonomia. Já no preâmbulo do CEM - que serve para enunciar as motivações do próprio Código - há a preocupação pela “busca de melhor relacionamento com o paciente e a garantia de maior autonomia à sua vontade; (...)”. A condição para que haja Autonomia depende, assim, de que as pessoas não sejam controladas em suas decisões, e que sejam capazes de executar ações intencionais [2]. A partir disso a Autonomia é facilmente verificada em pelo menos 05 (cinco) regras do Capítulo I do CEM (Incisos VII, VIII, XVI, XVII e XXI). Esse princípio é caracterizado como predicado protetivo, tanto do médico quanto do paciente.


Quando ele protege, o faz se voltando aos dois lados da relação. Pelo médico, busca assegurá-lo de que o exercício da sua profissão não incluirá atividades contrárias à sua consciência ou, mesmo, que não deseje executar (Inciso VII do Cap. I); ressalta a liberdade profissional em prol da eficiência e correção dos trabalhos (Inciso VIII do Cap. I); além de resguardar a escolha dos meios para se estabelecer o diagnóstico e tratamento (Inciso XVI do Cap. I). Pelo paciente, defende seu interesse e bem-estar (Inciso XVII do Cap. I); bem como seu direito à escolha dos procedimentos diagnósticos e terapêuticos (Inciso XXI do Cap. I).


Por óbvio, qualquer código de normas (como o é o caso do CEM) é concebido com a intenção de organizar um pensamento e de o sistematizar, metodicamente, para aplicação [3]. Assim fez o CEM, em suas considerações iniciais, buscando proteger a autonomia da vontade e o aprimoramento do relacionamento médico-paciente, forçando com que a tomada de decisão se dê considerando todos os aspectos da autonomia: tanto a do médico, quanto a do paciente. Exatamente por isso prima pela harmonização dos aspectos da autonomia, adequando uma à outra. Aqui é notória a premissa moral segundo a qual se deve levar em conta os interesses dos outros [4]. A ética só existe se submetida à relação intersocial. Isso fica mais claro quando ao médico não é dado negar serviços a paciente em casos de urgência ou emergência, sendo ele, na ocasião, o único médico capaz de prestar tais serviços (Inciso VII do Cap. I). Ou quando tem limitada a própria escolha dos meios a serem praticados para estabelecer o diagnóstico e executar o tratamento, quando tal limitação reverte em benefício do paciente (Inciso XVI do Cap. I). A integração segue também por parte da adequação dos direitos do paciente, que não pode escolher procedimentos diagnósticos e terapêuticos inadequados ao seu caso, ou não reconhecidos cientificamente (Inciso XXI do Cap. I). Este último faz destacar a importância do diálogo [5] como base da atuação médica, cujas diretrizes são fundamentais no exercício da atividade: da anamnese como ponto inicial do processo dialógico, à apresentação do diagnóstico ao paciente; da explicação dos meios de tratamento ao prognóstico, entre outros. A título exemplificativo, nem o mais poderoso analgésico tem valia se o profissional da medicina não compreende acuradamente os sintomas e a dor do paciente [6].


Vê-se, assim, que o CEM valorará os processos de mútua informação (em que médico e paciente aprendem um com o outro), para a tomada de decisões em conjunto, de modo a se alcançar, verdadeiramente, a Autonomia como capacidade de entender, discutir e tomar decisões sem a influência nefasta da ignorância, coerção ou falsidade. Alguns instrumentos comuns à Autonomia são as diretivas antecipadas de vontade do paciente (Resolução CFM 1.995/12), os termos de consentimento, o plano de parto, disposições sobre procedimentos médicos, entre outros.


Contudo, a Autonomia pode não ser facilmente reconhecida no dia-a-dia. Isso ocorre precipuamente nas situações de incapacidade (menor que não tem maturidade suficiente para a tomada de decisão, paciente portador de doença que compromete a cognição, dentre outras situações), e em que o paciente representa perigo para si ou para outros (mais comum em casos relacionados à psiquiatria). Cabe ao médico, nesses casos desafiadores, verificar o quanto da Autonomia do paciente é possível preservar. Não sendo uma tarefa fácil, mesmo nessas situações extremadas, será pela clínica que o médico deverá verificar quais escolhas um paciente com tais limitações é capaz de fazer, como a preferência pelo tipo de alimentação, sobre o uso ou dosagem de medicamentos, entre outras [7]. Ademais, o princípio da Autonomia, como já destacado, não é um axioma de prioridade [8] (não se sobrepõe, necessariamente, a outros princípios).


Logo, deverá o médico, também, redobrar sua atenção com os outros princípios da ética, vez que a Autonomia, embora didaticamente dissecável para uma análise individual, é estrutural e mutuamente complementar à Beneficência, à Não-Maleficência e à Justiça, que são os outros três. Em outras palavras, não há um axioma de prioridade entre os princípios. Isso já fica claro quando se verifica que a Autonomia, quando vista sob certos prismas, cambeia inegavelmente para outro princípio, que é o da Beneficência (assunto de que se tratará em outra oportunidade), o que apenas acentua a delicadeza que o assunto encerra.

 
  1. A Autonomia, a Beneficência, a Não-Maleficência e a Justiça são princípios integrados (sem hierarquia) de proposta norte americana voltada para médicos e profissionais da saúde criada por Tom L. Beauchamp e James F. Childress, e que trazem, conforme se verá, interessantes vantagens para o estudo do Código de Ética Médica brasileiro.

  2. BEAUCHAMP, Tom L; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics: Eighth Edition. New York: Oxford University Press, 2019, p. 100.

  3. Sobre o assunto, conferir HABERMAS, Jurgen. Teoria e práxis: estudo de filosofia social. Trad. Rúrion Melo. São Paulo: Editora Unesp, 2013, p. 148; LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 42; e WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Trad. A. M. Botelho Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 4a ed., 2010, p. 366.

  4. WILLIAMS, Bernard. Moral: uma introdução à ética. Trad. Remo Mannarino Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 107/108.

  5. KRESS, Hartmunt. Ética médica. Trad. Hedda Malina. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p. 31.

  6. BUCKMAN, Robert. Communication Skills in palliative care: a practical guide. Neurologic Clinics. Vol. 19, number 4, November 2001, page 989.

  7. BEAUCHAMP, Tom L; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics: Eighth Edition. New York: Oxford University Press, 2019, p. 100.

  8. BEAUCHAMP, Tom L; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics: Eighth Edition. New York: Oxford University Press, 2019, p. 157.

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