top of page
  • Foto do escritorDr. André Couto e Gama

3.Precisamos conversar sobre não-maleficência (O Código de Ética Médica e a Abstenção de prejudicar)

Atualizado: 22 de jun. de 2021

O terceiro Princípio do Código de Ética Médica (aplicável ao Código de Ética Médica - CEM) é o da não-maleficência, comumente lembrado pelo adágio primum non nocere, e então traduzido no ambiente médico como uma advertência: antes de tudo, não fazer mal ao paciente. É um dever negativo (um não-fazer), e a codificação, em seu primeiro capítulo (Princípios Fundamentais), apresenta diversas amostragens da regra de abstenção de prejudicar, quando repreende o uso da medicina para causar sofrimento físico ou moral, bem como para o extermínio de seres humanos, além de coibir que o médico permita ou acoberte qualquer violação à dignidade e integridade das pessoas (item VI). Segue o CEM afirmando que ao médico não é dado negar serviços a paciente em casos de urgência ou emergência, sendo ele na ocasião o único médico capaz de prestar tais serviços (Inciso VII do Cap. I). Vai além, desaprovando a exposição a terceiros de informações obtidas do e a respeito do paciente (item XI), determinando, por fim, que o médico evite a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários (item XXII).

Há seus desafios quando da tomada de decisão segundo a boa prática médica, desafios comuns à Ética, aliás. Exemplificativamente, o ato médico pode estar situado na diferença entre matar o paciente ou deixá-lo morrer; abdicar de iniciar tratamento de suporte básico de vida ou retirá-lo, uma vez iniciado [1]; entre outros.

Pacientes terminais que experimentam terríveis dores podem pedir ao médico ajuda para se matar [2] (eutanásia). O atendimento a este pedido fere o princípio da não-maleficência, pois envolve a clara intenção de causar a morte do paciente, tratando-se inclusive de crime, nos rigores da legislação penal. Fere também a autonomia do médico, que deve se negar a aceitar procedimentos terapêuticos inadequados, mesmo a pedido do paciente (Inciso XXI do Cap. I). Mas o médico pode prescrever medicamento comprovadamente adequado para suavizar o sofrimento de paciente, naquele quadro clínico, mesmo com o risco substancial de que o próprio fármaco encurte o tempo de vida do paciente, ou o leve a óbito imediato. O benefício é compreendido, nestes casos, como evidentemente maior do que o malefício [3].

Vê-se que a dualidade entre o fazer e o não fazer está no centro do debate sobre não maleficência. Em outras palavras, sobre a abstenção de se iniciar um tratamento, de um lado; e a interrupção de tratamento já instaurado, de outro [4]. Obstar medidas medicinais intensivas para prolongamento da vida é, de longa data, aqui e em toda parte do mundo, uma questão a atrair o exame ético [5]. Irá despertar, ainda, o difícil enfrentamento entre o possível antagonismo que contrapõe a preservação da vida ao alívio do sofrimento [6]. Imagine-se um caso de um idoso acometido de diversos problemas de saúde, sem qualquer prognóstico de uma positiva evolução, que está em estado comatoso e impossibilitado de comunicar-se, encontrando-se em uso de antibióticos e nutrição intravenosa. Ademais, para o qual não haja indicação de que tenha manifestado seu desejo a respeito de adoção de tratamentos de suporte básico de vida, não havendo, em acréscimo, familiar para tomar decisões [7]. Diga-se, ainda, que ao exame clínico, verificou-se quadro não indicativo de morte encefálica – ME, tornando inaplicável a declaração de óbito da Resolução CFM no 2.173/2017. Aqui, duas condutas podem ser destacadas para exame do ponto de vista do CEM: uma seria a abstenção de, no caso de uma parada cardíaca, iniciar processo de ressuscitação; outra, a interrupção dos antibióticos, da alimentação intravenosa e do desligamento do equipamento de suporte de vida. O CEM, ao determinar que o médico deve evitar a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários (item XXII), acena nem para que não se comece um procedimento, nem para que se o interrompa. Deveras, o médico não tem obrigação de continuar um tratamento que se provou ineficiente [8]. Mas, uma vez verificada a ineficácia do tratamento, o devido cuidado passa da cura para os cuidados paliativos apropriados (também no item XXII), com alívio da dor e cuidados básicos do paciente, atendendo-se às questões físicas, como desobstrução das vias respiratórias e satisfação das necessidades relacionadas a fome e sede [9]. Impossibilidade de cura e fracasso terapêutico não são autorizativos de qualquer iniciativa de supressão da vida [10]. Ressalta-se que a Resolução CFM 1.805/2006, a qual abriu espaço para a ortotanásia (procedimentos que permitiriam a evolução do percurso da doença que acomete o paciente, visando uma morte natural sem sofrimentos), escorou-se completamente na Autonomia do paciente (e não da equipe médica) para a decisão, além de garantir ao enfermo “todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar”. A referida Resolução CFM 1.805/2006 guarda compatibilidade claríssima com o art. 41 do Capítulo V do CEM, o qual trata da relação médico-paciente (extensivo à família). Neste caso específico, será a manifestação de vontade do paciente a classificar o ato médico de ortotanásia como ético com base na não-maleficência.


 

  1. BEAUCHAMP, Tom L; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics: Eighth Editon. New York: Oxford University Press, 2019, p. 155.

  2. BEAUCHAMP, Tom L; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics: Eighth Editon. New York: Oxford University Press, 2019, p. 167.

  3. BEAUCHAMP, Tom L; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics: Eighth Editon. New York: Oxford University Press, 2019, p. 167.

  4. BEAUCHAMP, Tom L; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics: Eighth Editon. New York: Oxford University Press, 2019, p. 161.

  5. KRESS, Hartmunt. Ética médica. Trad. Hedda Malina. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p. 283.

  6. FRANÇA, Genival Veloso de. Comentários ao Código de Ética Médica: 7a ed. Rio de Janeiro: Koogan, 2019, P. 153.

  7. BEAUCHAMP, Tom L; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics: Eighth Editon. New York: Oxford University Press, 2019, p. 162.

  8. BEAUCHAMP, Tom L; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics: Eighth Editon. New York: Oxford University Press, 2019, p. 163.

  9. KRESS, Hartmunt. Ética médica. Trad. Hedda Malina. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p. 285.

  10. FRANÇA, Genival Veloso de. Comentários ao Código de Ética Médica: 7a ed. Rio de Janeiro: Koogan, 2019, P. 155.

Comments


bottom of page