top of page
  • Foto do escritorDr. André Couto e Gama

4. Precisamos falar sobre Justiça na Saúde (o Código de Ética Médica e as Políticas Públicas)

Atualizado: 22 de jun. de 2021



O quarto e último Princípio estabelecido pelo Código de Ética Médica – CEM é o da Justiça, que, próprio do tema, encerra múltiplos sentidos. Mas isso não deve causar ao médico qualquer angústia, notadamente quando da tomada de decisão profissional; nem mesmo algum grau de ceticismo, desvalorizando o que é um verdadeiro celeiro de produção sobre ética e que traz implicações com relação ao ato médico.


Deste celeiro, destaque-se a bioética, para a qual surgem diversas teorias, aptas a lhe dar alguma explicação. Sem maiores divagações, temos que para ARISTÓTELES, justiça e injustiça são tratados em referência à regra posta (o legal e o ilegal) e ao equitativo (o igual e o desigual) [1]. BEAUCHAMP e CHILDRESS, para introduzir o princípio em foco, fazem uso de uma das muitas fórmulas feitas pelo grego [2], retirada de Ética a Nicômaco, em que se afirma que “não sendo as pessoas iguais, não terão coisas em porções iguais, entendendo-se que na medida em que não são iguais, não receberão em pé de igualdade [3]”. A igualdade não pode, assim, ser generalizada, de modo que seria injusto igualar desiguais indiscriminadamente. A partir daí, o princípio de justiça, na obra dos referidos norte-americanos – verdadeira proposta de uma política pública distributiva - irá se ocupar de resolver situações em que pacientes deveriam receber recursos sociais médicos essenciais com base em sua necessidade [4].


Tal qual ARISTÓTELES, BEAUCHAMP e CHILDRESS iniciam sua proposta a partir do estudo do antônimo (injusto), dando ao termo abordagem própria no sentido de que a base da distribuição social fere regra ética quando inclui em seu ponto de partida questões sobre gênero, raça, etnia, nacionalidade, entre outros [5]. Entendem que os recursos médicos devem ser distribuídos exclusivamente com base na necessidade, sendo contrários a qualquer discriminação, alocando aí, em substituição, o que chamam de regra de oportunidade justa no cuidado à saúde [6].

O CEM, para muito além de reunir meras regras corporativas [7], já indica sua ideia de justiça logo no Capítulo I (Princípios Fundamentais), com a advertência de que a medicina será exercida sem discriminação de nenhuma natureza (inciso I). Ao contrário, é profissão a ser posta a serviço da saúde do ser humano e da coletividade. Também preceitua que, nas pesquisas médicas com seres humanos, a proteção da vulnerabilidade dos sujeitos da pesquisa deva ser observada pelo médico (inciso XXIV). O código avança ainda mais ao determinar que a conduta médica deve zelar para que as pessoas não sejam discriminadas por nenhuma razão vinculada à herança genética, devendo o médico protegê-las em sua dignidade, identidade e integridade (inciso XXV). Ressalta-se que a Lei no 12.842/13, que regula o ato médico, logo em seu art. 2º, reafirma o adágio de não discriminar. A interpretação do CEM, inclusive na literatura brasileira, corrobora com o princípio da justiça, seja pela explicitude das regras acima, seja quando afirma que a prestação de cuidados médicos deve ocorrer de forma equitativa e universal, sem discriminação de um único ser humano que seja [8].


Esses conceitos desaguam em questões do dia-a-dia da prática médica e da saúde, como pode ser exemplificado pelos problemas sobre quem teria o direito de acesso a salas de emergência em hospitais e quem deveria estar na lista para transplante de órgãos [9]; na questão a respeito de se cobaias humanas são exploradas por sua vulnerabilidade [10]; entre outros. Disso fica claro que a matéria possui profunda ligação direta com o sistema de triagem (política de acesso e prioridade), com o tempo gasto com o paciente (em que uns demandam mais, outros menos), dentre outras situações, tudo a demandar aplicação prática do princípio em comento.


 

  1. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. trad. por Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2014, p. 187.

  2. BEAUCHAMP, Tom L; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics: Eighth Editon. New York: Oxford University Press, 2019, p. 268.

  3. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. trad. por Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2014, p. 187.

  4. BEAUCHAMP, Tom L; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics: Eighth Editon. New York: Oxford University Press, 2019, p. 269.

  5. BEAUCHAMP, Tom L; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics: Eighth Editon. New York: Oxford University Press, 2019, p. 281.

  6. BEAUCHAMP, Tom L; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics: Eighth Editon. New York: Oxford University Press, 2019, p. 267 e 282.

  7. FRANÇA, Genival Veloso de. Comentários ao Código de Ética Médica: 7a ed. Rio de Janeiro: Koogan, 2019, P. 02.

  8. FRANÇA, Genival Veloso de. Comentários ao Código de Ética Médica: 7a ed. Rio de Janeiro: Koogan, 2019, P. 13.

  9. BEAUCHAMP, Tom L; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics: Eighth Editon. New York: Oxford University Press, 2019, p. 269.

  10. BEAUCHAMP, Tom L; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics: Eighth Editon. New York: Oxford University Press, 2019, p. 267.

Comentarios


bottom of page