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  • Foto do escritorDr. André Couto e Gama

7. Surgimento e Solidificação do Sistema de Saúde Privado (SSP) no Brasil.

Atualizado: 31 de mar. de 2023

Um conjunto complexo de elementos organizados, isto é, um Sistema de Saúde Privado, certamente não nasce do dia para a noite. E buscar a compreensão sobre o contexto do surgimento desse particular Sistema de Saúde e as diversas alterações sofridas por ela, juntamente com os avanços e retrocessos da própria Medicina, é criar um arcabouço crítico sobre as qualidades, características e problemas do Sistema, tanto de ordem técnica quanto ética. É desse estudo que se retira a explicação sobre a estrutura atual de produção de serviços privados voltados para o campo da Saúde.

Um corte inicial deve ser estabelecido desde já: a orientação voltada para a iniciativa privada e, apenas para fins eminentemente necessários para complementação e contextualização, reflexões sobre a prestação pública de Saúde. Não se objetiva, assim, traçar a história da Saúde em todas as suas dimensões.

Não há consenso sobre o ponto de partida. O cuidado com a saúde realizado sem financiamento público e sem administração pelo Estado (ainda que com alguma intervenção, como o sistema de autorização para funcionamento) existe no Brasil desde os seus primórdios, como exemplificam as Santas Casas de Misericórdia de Olinda e Santos já da primeira metade do século XVI. Essas Santas Casas eram, desde aqueles tempos, instituições privadas sem fins lucrativos com estatutos próprios, e só podiam ser criadas mediante autorização governamental (do Rei). Outros entendem que o ponto de partida seria a análise de um setor privado de saúde marcado pela assistência médica mediante contraprestação, com contratação do médico ou grupos privados, o que também existe há séculos no Brasil. Ainda há aqueles que, buscando características de um Sistema, fixam o marco para o ano 1956, quando surgiu a Policlínica Central com fortes características próprias de planos de saúde. Todas essas propostas acrescem, por cento, ao estudo da assistência privada da Saúde brasileira. Mas um Sistema de Saúde Privado (SSP) e o que o caracteriza em mercado de saúde suplementar é sua natureza contratual e a fixação da demanda em função da renda das famílias e da dependência de emprego. Justamente o motivo de se buscar todas as contribuições que, verdadeiramente, levaram ao seu surgimento e solidificação no Brasil.

O Século XIX, no Brasil, é momento marcado politicamente pela transferência da Corte Portuguesa para o país (1808), além do final do Brasil Colônia e início de sua elevação a Reino (1815). Naqueles tempos, por óbvio, o Brasil era bastante diferente do atual, sendo de se destacar que, em levantamentos demográficos de 1800 a 1810, o Brasil tinha por volta de quatro milhões de habitantes, o que equivale a menos de dois por cento da população atual, sendo que, destes, menos de um milhão eram brancos e o restante índios, escravos e mestiços[1]. Neste contexto o atendimento médico era marcado segundo a origem social do paciente[2], que poderia receber os serviços em casa, quando havia forças para contraprestação[3]. Os cuidados médicos privados eram de consumo individual e se dividiam naqueles pagos diretamente pelo paciente ou recebidos de forma filantrópica, sendo que os financiados pelo Estado restringiam-se ao controle da situação sanitária (alimentos e saneamento do meio) e funções de polícia sanitária (sobretudo nas localizações portuárias)[4].

Interessante perceber que essa estrutura de Saúde se manteve por mais de um século. Uma citação de 1922 (já na Primeira República) ilustra bem essa questão. Dizia ela que parcela da população do Rio de Janeiro tinha acesso a hospitalização de luxo em diversas “Casas de Saúde” particulares, as quais já se apresentavam em grande número, bem como das Ordens Terceiras, entidades privadas mais módicas. Revela, em seguida, que a assistência hospitalar gratuita era exclusiva das Santas Casas de Misericórdia[5].

Ou seja, as estruturas hospitalares privadas até a Primeira República eram as Casas de Saúde, instituições hospitalares muito bem instaladas, para a época, e de caráter comercial, bem como as moderadas Ordens Terceiras, que não eram propriamente de assistência pública, mas sim fraternidades ou associação de leigos, seguidas ao final pelas Santas Casas.

Seguindo a linha do tempo, foi em 1923 que se promulgou a Lei Eloy Chaves (Decreto Legislativo 4.682/1923), a qual é apontada, praticamente de forma unânime, como corte inaugural da história da previdência[6]. Certamente, a referida Lei fez mais do que isso. Nela, já se vê um germen da atual operadora por autogestão (entidade sem fins lucrativos vinculada a entidade privada para administrar seus planos de saúde[7]), vez que as Caixas de Aposentadora e Pensões (CAPs)[8] eram organizadas pelas empresas de estradas de ferro em conjunto com empregados[9], com financiamento privado (empregados e empregadores[10]), cabendo ao Estado unicamente a fiscalização (vale frisar: não participava ativamente nem da administração, nem do financiamento[11]). Vale dizer: o que havia era a venda de serviços médicos mediante contratos e convênios firmados entre essas Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAP's) e, posteriormente, Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAP's)[12]. A natureza privada dessas instituições é evidente. Logo em seguida esse regime foi estendido para os trabalhadores portuários e marítimos, conforme Decreto 5.109, de 20 de dezembro de 1926[13]. Tudo isso aponta para o estabelecimento, em todo o Brasil (pelo menos onde chegava o alcance das empresas de estradas de ferro) de assistência médica por adoecimento (com evidente foco nas condições agudas) e assistência medicamentosa[14].

Exemplo pode ser extraído do caso do Hospital São Paulo (HSP), cujas atividades se iniciaram em 1940 e, como ocorria com muitas entidades filantrópicas sem fins lucrativos da época, além de assistência aos indigentes, oferecia leitos para pensionistas a partir de convênios diversos assinados com os Institutos de Aposentadoria[15].

O mercado de saúde teve, em 1956, uma nova contribuição muito marcante para o Sistema de Saúde Privado. Trata-se da fundação de uma nova Policlínica, em São Paulo, uma medicina de grupo pioneira na organização de um plano de saúde (mediante contratação e pagamento pelo usuário, sem intervenção estatal) como alternativa aos serviços custeados pelos Institutos de Aposentadoria da época.

Logo em seguida, em agosto de 1966, é fundada a Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), representação institucional das medicinas de grupo do setor, a qual se apresenta no papel de desenvolver o sistema de planos de saúde no Brasil[17].

A primeira cooperativa médica no Brasil surgiu em seguida, via mobilização de Sindicato da classe médica, no ano de 1967, como reação ao surgimento das medicinas de grupo, que eram criadas não só por médicos, mas também por empresários e outros profissionais forjados fora da Saúde[16].

Um último marco que resulta tanto da consequência dos acontecimentos até agora relatados quanto estabelece muito do porvir é a promulgação, aos 05 de outubro de 1988, da Constituição da República Federativa do Brasil, a qual seguiu muito do definido pela 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, expressamente determinando acesso irrestrito da iniciativa privada frente ao mercado de Saúde (regra que permanece sem qualquer alteração, até os dias de hoje):


Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.

§ 1º - As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.

§ 2º É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos.

§ 3º É vedada a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei.

§ 4º A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização”.



 

[1] http://historia_demografica.tripod.com/pop.pdf, acessado aos 03/08/2022 [2] DONNANGELO, Maria Cecília. Medicina e Sociedade. São Paulo: Duas Cidades, 1979, p. 31. [3] NETO, Gonzalo Vecina; e MALIK, Ana Maria. Gestão em Saúde: segunda edição. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 2019, p. 04. [4] NETO, Gonzalo Vecina; e MALIK, Ana Maria. Gestão em Saúde: segunda edição. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 2019, p. 04. [5] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Departamento Nacional de Saúde. Divisão de Organização Hospitalar. História e Evolução dos Hospitais. Ministério da Saúde: Rio de Janeiro, 1965, p. 65. [6] OLIVEIRA, Jaime A.; TEIXEIRA, Sonia M. Fleury. (Im)previdência social: 60 anos de história da previdência no Brasil. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Abrasco, 1985, p. 19. [7]Art. 2º - Para efeito desta resolução, define-se como operadora de planos privados de assistência à saúde na modalidade de autogestão: II – a pessoa jurídica de direito privado sem finalidades lucrativas que, vinculada ou não à entidade pública ou privada, opera plano privado de assistência à saúde exclusivamente aos seguintes beneficiários: a) empregados e servidores públicos ativos; b) empregados e servidores públicos inativos; c) ex-empregados e ex-servidores públicos; d) sócios, administradores e ex-administradores, quando for o caso; e) empregados ativos e inativos, pensionistas e ex-empregados da própria pessoa jurídica; e f) grupos familiares dos beneficiários descritos nos incisos anteriores, limitado ao terceiro grau de parentesco, consangüíneo ou afim”. In BRASIL. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Resolução Normativa 137, de 14 de novembro de 2006. [8]Art. 1º Fica creada em cada uma das emprezas de estradas de ferro existentes no paiz uma caixa de aposentadoria e pensões para os respectivos empregados” [conforme português arcaico]. In BRASIL. Decreto 4.682, de 24 de janeiro de 1923. Publicado na CLBR de 1923. [9]Art. 41. A caixa de aposentadorias e pensões dos ferroviarios será dirigida por um Conselho de Administração, de que farão parte o superintendente ou inspector geral da respectiva empreza, dous empregados do quadro – o caixa e o pagador da mesma empreza – e mais dous empregados eleitos pelo pessoal ferro-viario, de tres em tres annos, em reunião convocada pelo superintedente ou inspector da empreza. (...)” [conforme português arcaico]. In BRASIL. Decreto 4.682, de 24 de janeiro de 1923. Publicado na CLBR de 1923. [10]Art. 3º Formarão os fundos da caixa a que se refere o art. 1º: a) uma contribuição mensal dos empregados, correspondente a 3 % dos respectivos vencimentos; b) uma contribuição annual da empreza, correspondente a 1 % de sua renda bruta (...)” [conforme português arcaico]. In BRASIL. Decreto 4.682, de 24 de janeiro de 1923. Publicado na CLBR de 1923. [11] OLIVEIRA, Jaime A.; TEIXEIRA, Sonia M. Fleury. (Im)previdência social: 60 anos de história da previdência no Brasil. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Abrasco, 1985, p. 22. [12] MEDICI, André Cezar. O setor privado – prestador de serviços de saúde no Brasil: dimensão, estrutura e funcionamento. IBGE, 1990, p. 09. [13]Art. 1º (...) § 1º Os dispositivos da presente lei são extensivos a todas as emprezas de navegação maritima ou fluvial e ás de exploração de portos pertencentes a União, aos Estados, aos municipios e a particulares, em tudo quanto lhes possa ser opplicavel” [conforme português arcaico]. In BRASIL. Decreto 5.109, de 20 de dezembro de 1926. Publicado no Diário Oficial da União - Seção 1 - 30/12/1926, Página 24113. [14]Art. 9º Os empregados ferro-viarios, a que se refere o art. 2º desta lei, que tenham contribuido para os fundos da caixa com os descontos referidos no art. 3º, letra a, terão direito: 1º, a soccorros medicos em casos de doença em sua pessôa ou pessôa de sua familia, que habite sob o mesmo tecto e sob a mesma economia; 2º, a medicamentos obtidos por preço especial determinado pelo Conselho de Administração; (...)” [conforme português arcaico]. In BRASIL. Decreto 4.682, de 24 de janeiro de 1923. Publicado na CLBR de 1923. [15] MARINHO, Maria Gabriela S. M. C. [el al]. Medicina, Saúde e História: textos escolhidos e outros ensaios. Vol. São Paulo: USP, Faculdade de Medicina: UFABC, Universidade Federal do ABC: CD.G Casa de Soluções e Editora, 2014, pág. 111. [16] DUARTE, Cristina Maria Rabelo. Unimed: história e características da cooperativa de trabalho médico no Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 17(4):999-1008, jul-ago, 2001, pág. 1001. [17] In https://abramge.com.br/portal/index.php/pt-BR/a-associacao

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